Falar sobre os sabores do Nordeste é falar sobre possibilidades extremamente apetitosas que se mesclam com heranças culturais. Os temperos carregam não somente aromas e sabores acentuados, mas também séculos de história que, juntos, resultam em um grande mosaico cultural e gastronômico.
Os nove estados que compõem a região têm, cada um à sua maneira, ingredientes e receitas que vão muito além dos tradicionais baião de dois e carne de sol.
Nada melhor do que uma viagem a Salvador, a primeira capital do país e Cidade Criativa da Unesco, para mergulhar nos sabores mais vibrantes e tradicionais do estado. Foi o que fiz para a temporada especial CNN Viagem & Gastronomia: Sabores do Brasil, em que, ao lado de chefs e personagens desta terra, experimentei um pedacinho da cultura baiana em forma de comida.
Depois de percorrer cantinhos deliciosos no Norte e também no Maranhão, chegou a vez de me aprofundar ainda mais nos frutos do mar, nas iguarias de rua e nos doces de tabuleiro que o Nordeste nos reserva.
Raízes africanas e sincretismo religioso

Na Bahia, as raízes africanas foram misturadas à criatividade brasileira, e pessoas, projetos e comunidades locais se envolvem na gastronomia baiana para salvaguardar suas práticas e conhecimentos.
Pense, por exemplo, no acarajé: o bolinho de feijão fradinho, cebola e sal, frito em azeite de dendê, é uma iguaria de origem africana, que chegou aqui junto dos escravos da colonização do Brasil e que foi totalmente incorporada à nossa cultura alimentar.
Inclusive, o ofício das baianas do acarajé, que vendem a delícia pelas vias de Salvador, virou bem imaterial do estado. É uma comida de rua que pode vir acompanhada de pimenta, camarão e vatapá, mas que vai além, tendo também sentido religioso, sendo ofertada nos terreiros de candomblé.
Outro exemplo é o caruru de Cosme e Damião, mais um patrimônio imaterial da Bahia. A receita leva quiabo cortado, camarão seco, azeite de dendê e outros temperos. Ela não é somente compartilhada por comensais como também ofertada durante o mês de setembro em homenagem aos santos e divindades do catolicismo e do candomblé, revelando o sincretismo religioso da Bahia.
Os exemplos acima ainda guardam outro traço em comum: o dendê. Fruto do dendezeiro, ele resulta em vários óleos. Ao lado do chef Fabrício Lemos, soteropolitano por trás do Grupo Origem, com seis negócios na capital baiana, conheci um pouco mais do fruto e das pessoas por trás do ofício – tudo regado a um banquete baiano digno de dar água na boca.
Transformação através do alimento
Em uma manhã ensolarada na Baía de Todos os Santos, uma embarcação me levou em direção à Ilha de Itaparica com o intuito de conhecer um projeto que sintetiza bem a riqueza gastronômica do estado. Falo do Instituto Ori, cuja semente foi a busca pelos sabores e tradições da Bahia.
O objetivo é promover pesquisas e o desenvolvimento social, educacional, cultural e turístico relacionado à gastronomia. Para tanto, o Instituto realiza uma série de expedições com chefs e cozinheiros baianos em busca de ingredientes nativos e identitários, em que mergulham na cultura alimentar e no modo de vida de pequenos produtores artesanais do estado.
Um dos nomes por trás da empreitada é justamente Fabrício Lemos, apaixonado pela comida de sua terra e disposto a difundi-la – e defendê-la – para além das mesas de suas casas em Salvador. Junto da chef Lisiane Arouca, ele comanda endereços como o Boteco Megiro e o Restaurante Orí, mas a cereja do bolo fica com o Origem, que, por meio de menus degustação, foi pioneiro em colocar Salvador no radar de importantes prêmios mundiais.
Após estudar fora do país, o retorno à nossa terra deixou-o mais animado para investigar ingredientes da própria Bahia. “Meu sonho era voltar para o Brasil para poder ajudar e capacitar o que sou hoje. Digo que ainda conheço pouco sobre a Bahia. Temos alguns biomas nativos e uma grande diversidade de fauna e flora, trazendo ainda muitas heranças culturais”, diz o chef.
Dendê e mariscada

Em Itaparica, nos encontramos com Solange Araujo de Castro, a Dona Solange, referência na produção de dendê de pilão. Ela nos alerta: dendê não é tudo a mesma coisa, já que o fruto pode vir de diferentes dendezeiros. Os frutos podem ser diferenciados pela espessura da casca, por exemplo, e um deles é chamado de caiçara, cujo azeite tem uma cor degradê parecida com a cor que o próprio fruto possui na parte externa. É lindo!
E como se faz o azeite de dendê? Solange explica: depois que o fruto é retirado da mata, demora cerca de três dias para soltar do cacho. Ele então é lavado, cozido e colocado no pilão para ser socado até virar uma pastinha – quanto mais amassado, melhor fica. Adiciona-se água para lavar a massa, o que resulta em uma espécie de mingau. Ele segue então para o fogo para dar o choque térmico e para sair o azeite.
Visitar a produtora e fazer essa conexão direta com o que consumimos acaba dando um outro sabor à comida, já que passamos a respeitar ainda mais os processos e as pessoas por trás do nosso alimento.
“O Instituto Ori é um coletivo de pessoas que trata o alimento como um transformador socioambiental. Há mais de uma década nosso ensejo é de encontrar os ingredientes e também as pessoas por trás dos ingredientes”, me conta Caco Marinho, presidente do instituto.
Para coroar a experiência, Fabricio, Caco e Dona Solange me ofereceram um banquete de almoço. O prato principal foi uma mariscada com siri e aratu, pequeno caranguejo presente no Nordeste, em especial na Bahia.
Um pouco de camarão aqui, farofa de dendê ali, arroz de coco e o almoço farto com sabores da Bahia estava feito. Para brindar, um espumante da Uvva, vinícola em plena Chapada Diamantina, casou bem com os ingredientes locais.
Os doces e o legado baiano

A moqueca e o acarajé são símbolos da Bahia conhecidos Brasil afora, mas não podemos nos esquecer de outras receitas mais açucaradas. Os doces do estado, mais especificamente os doces de tabuleiro, têm lugar certo no cardápio do baiano.
Para ajudar a contar melhor essa história, fui atrás de Lisiane Arouca, chef confeiteira do Grupo Origem, que faz uma tradução dos doces populares da Bahia à alta gastronomia. Uma das iguarias mais emblemáticas do país, e da região, é a queijadinha, que é bem brasileira e remete à herança portuguesa.
Assim como grande parte dos doces da Bahia, o doce chegou aqui como uma queijada portuguesa, mas rapidamente os africanos a transformaram com a adição de coco.
“A junção do doce português com o africano e o índigena pode ser encontrada na história da doçaria brasileira com receitas separadas, mas em alguns momentos elas aparecem juntas, como é o caso da queijadinha”, conta Lisiane.
Uma das receitas que ela serve, inclusive, mostra um pouco dessa mistura. Trata-se da “Baianidade”, um bolinho de tapioca com pudim de queijo, ambrosia, creme inglês de maracujá e gel de maracujá servido com sorvete de coco queimado. A delícia pode ser encontrada no menu do Restaurante Orí, no Horto Florestal.
Outras criações também jogam luz à essa herança. Em menus passados do restaurante Origem, por exemplo, foram sevidos curau com milho assado, molho de laranja e sorvete de canela, ou ainda um sorvete de mungunzá com gel de tamarindo.
No Boteco Megiro, mais nova aposta de Fabrício e Lisiane, a refeição pode ser arrematada pela “Cremosinha”, sobremesa com queijadinha morna e goiabada. Não para por aí: se você se hospedar no Fera Palace, hotel histórico que guarda um rooftop entre os mais lindos de Salvador, os docinhos baianos também estão garantidos do café ao jantar, já que a dupla comanda a gastronomia do pedaço.
E de onde nasceu essa paixão pelos doces de Lisiane? “Na barriga da minha mãe. Nasci com seis quilos e minha mãe teve diabetes gestacional. Ela brinca que desde criança meu paladar é muito doce”.